
Reduzir o debate racial a uma disputa entre esquerda e direita é um erro que enfraquece a democracia e ignora a realidade da maioria dos brasileiros. As desigualdades que atingem a população negra não são fruto de opinião ou ideologia: são dados concretos. O último Censo do IBGE, em 2022, revelou que 55,5% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos. Mesmo assim, pessoas brancas continuam ganhando, em média, 61% a mais que pessoas negras. No campo da violência, segundo o Atlas da Violência 2023, 77% dos jovens assassinados no país são negros. Esses números não mudam conforme a orientação partidária de um governo, mas sim pela capacidade do Estado e da sociedade de compreender que a pauta racial é estrutural, e não setorial.
A esquerda brasileira teve papel central na construção de políticas de reconhecimento, como as cotas raciais, a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Seu principal mérito foi reconhecer o racismo como elemento estruturante das desigualdades e a necessidade de ações afirmativas para corrigi-las. No entanto, parte da esquerda ainda trata a questão racial como um tema simbólico ou restrito à militância. Falta traduzir o discurso em presença efetiva de pessoas negras em cargos de poder e em políticas públicas que considerem a pluralidade da população negra, composta por empreendedores, religiosos, artistas, conservadores e progressistas.
A direita, por outro lado, costuma valorizar a liberdade econômica, o mérito individual e o empreendedorismo. São princípios que dialogam diretamente com a realidade de milhões de brasileiros negros que vivem da economia popular, do comércio informal e do microcrédito. Segundo o Sebrae, 67% dos microempreendedores individuais do país são pretos ou pardos — um dado que mostra como o protagonismo negro está presente na base produtiva da economia. Além disso, grande parte da população negra é evangélica, e as igrejas se tornaram espaços fundamentais de acolhimento, solidariedade e reconstrução de vidas. Esses valores são potencialidades reais da direita para contribuir com a inclusão racial, mas só quando reconhece que a largada histórica não é igual para todos.
O problema é que setores conservadores ainda resistem em admitir que o racismo é estrutural. Quando se nega a existência dessa estrutura, qualquer tentativa de reparação é tratada como “vitimismo” ou “intervencionismo do Estado”. Esse negacionismo impede a formulação de políticas eficazes de segurança pública, educação e crédito que corrijam as desigualdades de origem. Ao mesmo tempo, parte da esquerda falha em dialogar com o universo religioso e com o empreendedorismo negro, tratando essas dimensões como contradições políticas, quando, na verdade, são expressões legítimas da experiência negra no Brasil.
As igrejas evangélicas ilustram bem essa complexidade. Elas acolhem milhões de fiéis negros em todo o país, oferecendo apoio social, emocional e espiritual em comunidades onde o Estado quase sempre está ausente. Nessas igrejas, convivem o desempregado, o jovem em vulnerabilidade, a mãe solo e o pequeno empreendedor. É um espaço de fé, mas também de reconstrução social. Ignorar esse território é fechar os olhos para uma das maiores expressões de organização negra contemporânea.
A pauta racial precisa atravessar orçamentos públicos, planos de governo e políticas privadas. Ela deve estar presente nas metas de segurança, nos programas de habitação, nos editais de cultura e nas estratégias de inovação tecnológica. A superação das desigualdades raciais não é tarefa de um espectro político, mas de uma nação que reconhece sua própria composição. O desafio é construir uma agenda racial transversal, capaz de unir eficiência administrativa, responsabilidade social e justiça histórica.
Colocar a pauta racial acima das disputas entre esquerda e direita não significa eliminar divergências ideológicas. Significa compreender que, sem enfrentar o racismo, o Brasil continuará reproduzindo desigualdades e desperdiçando talentos. A vida da população negra não pode esperar que uma das forças políticas “vença” o debate. Ela exige que ambas aprendam, se responsabilizem e atuem. A pauta racial não é uma bandeira partidária — é a base de um país que só será verdadeiramente democrático quando todos puderem começar do mesmo ponto.
📊 Fontes: IBGE (Censo 2022), Atlas da Violência 2023 (IPEA/FBSP), Sebrae 2023.