Juvenal Araújo: “Por que o Brasil precisa das comissões de heteroidentificação nas eleições”

O artigo de Juvenal Araújo defende que as comissões de heteroidentificação são fundamentais para garantir a integridade das políticas de cotas raciais, inclusive no processo eleitoral. Ele argumenta que, embora a autodeclaração racial seja um direito, é necessário um mecanismo de verificação baseado no fenótipo — já que o racismo no Brasil é visual — para evitar fraudes e assegurar que os recursos e espaços de representatividade realmente cheguem à população negra. Para o autor, essas comissões não restringem direitos, mas protegem a verdade, a democracia e a justiça racial, impedindo que o privilégio branco se disfarce de reparação.

Juvenal Araújo: “Por que o Brasil precisa das comissões de heteroidentificação nas eleições”

Comissões de heteroidentificação no processo eleitoral são essenciais para garantir a verdade racial, impedir fraudes e assegurar que a política de cotas seja efetiva e justa.

No período em que ocupei o cargo de Secretário Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, participei diretamente da construção do Ato Normativo nº 4, que regulamenta as comissões de heteroidentificação no Governo Federal. Escrevo não apenas como gestor público, mas como homem negro que conhece, na pele e na política, o impacto do racismo e a importância das ações afirmativas. Nos últimos anos, o Brasil deu passos importantes ao reconhecer que a história de exclusão da população negra não pode ser ignorada. As cotas raciais em universidades, concursos públicos e mais recentemente no processo eleitoral são exemplos de políticas que corrigem desigualdades históricas. Mas essas políticas só funcionam com credibilidade se forem protegidas de fraudes. E é exatamente aí que entram as comissões de heteroidentificação. A autodeclaração racial é um direito individual, reconhecido pela Constituição. No entanto, quando essa autodeclaração gera acesso a benefícios públicos, financiamento eleitoral ou vagas reservadas, ela precisa de mecanismos de verificação para evitar abusos. Dados do Ministério Público Federal mostram milhares de denúncias de pessoas brancas que se autodeclararam pardas ou negras para ocupar vagas destinadas à população negra em concursos e universidades.

Fraudes também já foram identificadas no serviço público e no acesso a bolsas acadêmicas. Se isso acontece em concursos e universidades, por que não ocorreria nas eleições, onde estão em disputa poder político, recursos públicos e visibilidade? Desde 2020, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que os partidos devem destinar parte do Fundo Eleitoral e do tempo de propaganda para candidaturas negras. A medida é justa, mas sem heteroidentificação, abre-se um risco: pessoas sem traços fenotípicos negros se autodeclaram pardas apenas para receber recursos de campanhas e ocupar espaços de representatividade que não refletem a realidade do povo negro. As comissões de heteroidentificação não anulam a autodeclaração. Elas a validam com base no fenótipo, ou seja, nas características visíveis que determinam quem sofre racismo no Brasil: cor da pele, textura do cabelo, traços do rosto. O racismo é fenotípico, e por isso a política de reparação também deve ser. Essa análise é feita com respeito, sem invasão de privacidade e com critérios técnicos definidos desde 2016 pelo Ministério do Planejamento, pela Secretaria Nacional de Igualdade Racial e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Essas comissões não são instrumentos de constrangimento, mas de proteção da verdade e da justiça. Hoje, mais de 70 universidades federais e diversos órgãos públicos utilizam esse mecanismo com sucesso. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a heteroidentificação é legítima, constitucional e necessária para preservar a integridade das ações afirmativas. Sem ela, enfraquecemos a política pública, permitimos que o privilégio branco se disfarce de reparação racial e transformamos a luta do povo negro em palco de oportunismo. Já com a heteroidentificação, garantimos que o recurso destinado à população negra chegue, de fato, a candidatos negros. Garantimos que jovens negras e negros se vejam representados por pessoas que compartilham suas dores, sua história e sua cor. Não estamos falando de privilégio, e sim de justiça histórica. A escravização durou mais de trezentos anos. A liberdade jurídica veio, mas a igualdade nunca foi entregue. As comissões de heteroidentificação são um instrumento de proteção da democracia, para que a representatividade não seja apenas um discurso bonito, mas uma prática concreta.

Se queremos uma democracia verdadeira, precisamos garantir que pessoas negras estejam não só nos discursos, mas nos parlamentos, nos executivos, nos espaços de decisão. Isso só será possível se a ação afirmativa for levada a sério, sem brechas para fraudes. Defender a heteroidentificação nas eleições é defender a democracia, a sinceridade do processo eleitoral e a dignidade de um povo que sempre resistiu. É afirmar que o Brasil não pode mais aceitar que a cor da pele seja usada como instrumento de injustiça ou vantagem. Sem esse mecanismo, abrimos espaço para a mentira. Com ele, abrimos portas para a reparação e para uma democracia que tenha, finalmente, a cara do seu povo.