Extremos: comunista e ultradireitista vão ao 2º turno no Chile

Polarização ideológica, avanço da criminalidade e debate sobre imigração moldam o segundo turno entre Jeannette Jara e José Antonio Kast.

Extremos: comunista e ultradireitista vão ao 2º turno no Chile
Rodrigo Arangua e Marvin Recinos/AFP

O primeiro turno das eleições chilenas, realizado neste domingo (16), consolidou um cenário que há meses vinha sendo antecipado pelas pesquisas: um país profundamente dividido entre dois projetos de futuro. Com 99,99% das urnas apuradas, Jeannette Jara, do Partido Comunista e apoiada pelo presidente Gabriel Boric, liderou a disputa com 26,85% dos votos, seguida por José Antonio Kast, representante da ultradireita pelo Partido Republicano, que alcançou 23,92%. Os dois agora seguem para o segundo turno marcado para 14 de dezembro.

A corrida presidencial acontece em meio à pior crise de segurança pública em décadas, tema que se tornou dominante no debate eleitoral. A escalada da violência, o crescimento do crime organizado e a percepção de fragilidade das fronteiras transformaram a segurança no principal critério de escolha do eleitor — superando questões históricas como desigualdade, saúde e educação. Quatro anos após a eleição de Boric impulsionada por protestos sociais, o Chile vive uma inflexão política, agora guiada pelo medo, pelas incertezas e por uma sensação generalizada de perda de controle.

Jara, ex-ministra do Trabalho de Boric, tenta equilibrar propostas sociais com respostas firmes ao crime organizado. Em seu discurso pós-votação, criticou adversários por “exacerbar o medo” e defendeu que o país precisa de diálogo e pactos para avançar. Entre suas propostas, está a revogação do sigilo bancário de suspeitos, permitindo rastrear recursos de organizações criminosas, e políticas que garantam estabilidade econômica às famílias, como controle de preços de medicamentos e a criação da Empresa Nacional de Lítio, considerada estratégica na transição energética.

Kast, por sua vez, consolidou-se como o porta-voz da direita mais dura, defendendo medidas de choque na segurança e um rígido controle migratório. Entre suas promessas estão a expulsão imediata de imigrantes irregulares e a implantação do chamado “Escudo da Fronteira”, um projeto que prevê muro, trincheiras e cercas elétricas na divisa norte do país. O candidato também defende cortes de gastos públicos e a ampliação de parcerias público-privadas em áreas essenciais, como saúde e educação. Sua candidatura recebeu o apoio de outros nomes da direita, incluindo Johannes Kaiser, que terminou em quarto lugar com 13,94%.

O pano de fundo desse embate eleitoral é um Chile transformado por dois choques recentes: o aumento da criminalidade e a grande onda migratória, especialmente de venezuelanos que fugiram do regime de Nicolás Maduro. Hoje, quase 700 mil venezuelanos vivem no país, e parte da população passou a associar imigração ao avanço da violência — ainda que especialistas alertem que a relação é mais complexa do que o debate político apresenta. Em dez anos, a taxa de homicídios mais que dobrou, chegando a 6 por 100 mil habitantes em 2024. Casos de sequestro também se multiplicaram, com mais de 860 registros no último ano.

A socióloga Lucia Dammert, especialista em segurança na América Latina, afirma que o Chile não estava preparado para lidar simultaneamente com o aumento da violência e a chegada massiva de estrangeiros. Segundo ela, o debate público se contaminou pelo medo, e muitas propostas se concentram no combate a grupos internacionais como o Tren de Aragua, gangue venezuelana classificada como organização terrorista pelos Estados Unidos quando o crime doméstico também tem peso central. “O debate político se alimenta desses choques, mas ainda não conseguiu superá-los”, afirma.

Enquanto o governo Boric tenta demonstrar resposta, ampliando o orçamento policial, criando forças-tarefa e reforçando a fronteira com apoio militar, parte significativa da opinião pública se mostra descrente e disposta a apostar em soluções mais duras. Esse ambiente tem favorecido Kast, que promete “recuperar a ordem perdida”. Ainda assim, as pesquisas apontavam que, apesar de liderar o primeiro turno, Jara poderia enfrentar dificuldades no segundo especialmente diante da consolidação dos votos da direita.

Com o país dividido e pressionado por crises simultâneas, o dia 14 de dezembro se aproxima como um marco decisivo. Os chilenos irão às urnas não apenas para escolher um presidente, mas para definir qual será o eixo moral, social e político que guiará o Chile nos próximos anos: o caminho de reformas sociais defendido por Jara ou a guinada conservadora proposta por Kast. O futuro do país, mais uma vez, está em aberto.