
O Brasil ainda convive com uma realidade silenciosa e alarmante: 34 mil crianças e adolescentes de 10 a 14 anos vivem em união conjugal, segundo dados do Censo 2022, divulgados pelo IBGE nesta quarta-feira (5). Apesar de o casamento ser proibido por lei antes dos 16 anos, os números revelam que a prática persiste, principalmente em formas informais, longe da proteção legal e do olhar das políticas públicas.
A maior parte dessas uniões 86,6% ocorre de maneira consensual, sem registro civil, religioso ou em cartório. O dado reforça a informalidade e a invisibilidade que cercam o tema: quase 30 mil crianças vivem como adultas sem qualquer amparo jurídico.
Entre os casos registrados, as meninas são as principais vítimas, representando 77% do total. A maioria é parda (62%), seguida de brancas (27%) e pretas (9,2%), refletindo o peso das desigualdades raciais e sociais sobre a infância brasileira.
Desde 2019, o Código Civil proíbe o casamento de menores de 16 anos, mesmo em casos de gravidez exceções que antes eram usadas para legitimar uniões precoces. Mas a proibição legal não tem sido suficiente para conter uma prática que se sustenta em padrões culturais e estruturas de violência.
Para Mariana Zan, advogada do Instituto Alana, o problema é tratado com normalidade social. “O casamento infantil não é visto como um problema. Ele é silencioso, aceito e, por isso, persiste. É uma violação de direitos que se disfarça de tradição”, afirma.
Zan explica que, para muitas meninas, o casamento surge como falsa saída de situações de abuso ou pobreza. “Há casos em que o casamento aparece como fuga de violência dentro de casa. Mas, na prática, elas trocam um tipo de violência por outro. Deixam de estudar, assumem tarefas domésticas e se tornam dependentes economicamente”, alerta.
Os impactos são profundos: evasão escolar, gravidez precoce, vulnerabilidade à violência doméstica e às infecções sexualmente transmissíveis. “É um ciclo de exclusão que começa cedo e se perpetua por gerações”, completa.
Para especialistas, enfrentar o casamento infantil exige políticas públicas integradas, educação comunitária e mudança cultural. “É preciso desnaturalizar a ideia de que uma menina de 12 anos casada é algo normal. Ela deveria estar estudando, brincando, sonhando com o futuro não cuidando de uma casa”, diz Zan.
Embora os números do Censo sejam frios, o retrato que revelam é contundente: milhares de meninas brasileiras ainda vivem na interseção entre pobreza, violência e invisibilidade, em um país que lhes deve o direito básico à infância.
Garantir que nenhuma criança precise se casar para sobreviver é o primeiro passo para um Brasil mais justo.