Juvenal Araújo: “Aos 18, sem rumo: o destino invisível da juventude negra que deixa os abrigos”

O artigo de Juvenal Araújo denuncia o abandono enfrentado por jovens, majoritariamente negros, que aos 18 anos são obrigados a deixar abrigos sem apoio, emprego ou moradia. Ele aponta que o problema é consequência direta do racismo estrutural e da falta de políticas públicas de transição para a vida adulta. O autor defende a criação de programas obrigatórios que ofereçam formação profissional, apoio psicológico, moradias assistidas e cotas de aprendizagem, além de políticas com recorte racial explícito. Para ele, o Estado deve acompanhar cada egresso do acolhimento e garantir que nenhum seja lançado à própria sorte, transformando o que hoje é um “salto no escuro” em uma oportunidade real de dignidade e autonomia.

Aos 18 anos, milhares de jovens brasileiros são obrigados a deixar os abrigos e casas de acolhimento onde cresceram. Muitos saem sem família, sem emprego, sem formação profissional e sem perspectiva. Quando olhamos mais de perto, percebemos que boa parte desses jovens é negra — e que essa coincidência tem nome: desigualdade estrutural.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem mais de 30 mil crianças e adolescentes em serviços de acolhimento. Cerca de 70% deles são negros. É um dado que deveria causar indignação, mas que segue invisível no debate público. Entre os que conseguem ser adotados, a maioria é não negra; já os adolescentes pretos, em especial os mais velhos, continuam sendo os menos procurados. É o retrato de um racismo que começa no berço e se renova a cada fase da vida.

O drama se torna ainda mais cruel quando a maioridade chega. Ao completar 18 anos, esses jovens são desligados do sistema e precisam se virar sozinhos, muitas vezes sem preparo algum para a vida adulta. É comum que saiam sem ensino médio completo, sem profissão, sem moradia e sem rede de apoio. “Lá dentro era tudo providenciado; aqui fora, se quiser jantar tem que fazer”, disse um jovem recém-egresso de uma casa de acolhimento do Distrito Federal. A frase resume o abismo entre a proteção institucional e o abandono social.

Como ex-Secretário Nacional de Promoção da Igualdade Racial, acompanhei de perto esse problema. Ao longo dos anos, lutei para que o Estado brasileiro reconhecesse que a desigualdade racial não termina na porta de um abrigo. O que acontece com esses jovens não é um mero descuido administrativo — é uma consequência direta do racismo estrutural, da pobreza e da ausência de políticas de transição efetiva para a vida adulta.

Não há como falar em autonomia sem falar em oportunidades. E elas não aparecem sozinhas. É urgente criar políticas públicas que preparem esses jovens para a saída do acolhimento com dignidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente até permite a prorrogação da permanência até os 21 anos, mas na prática poucos têm acesso a esse direito. Falta estrutura, falta vontade política e, sobretudo, falta sensibilidade.

O Brasil precisa implementar programas obrigatórios de transição para a vida adulta, que comecem aos 16 anos e garantam a esses jovens formação profissional, estágio, apoio psicológico e social. Também é necessário firmar parcerias com o setor produtivo, oferecendo cotas de aprendizagem e programas de trainee para egressos do acolhimento, especialmente jovens negros. Não se trata de assistencialismo — é investimento em capital humano e justiça social.

Outro caminho essencial é a criação de moradias de transição, como repúblicas jovens ou residências assistidas, onde esses adolescentes possam viver com acompanhamento até se estabelecerem. Modelos assim já existem em outros países e mostram resultados concretos na redução da reincidência em situações de vulnerabilidade.

Além disso, é preciso tratar o tema com um recorte racial explícito. Jovens negros enfrentam, historicamente, as maiores barreiras de acesso à educação, emprego e moradia. Ignorar esse fator é perpetuar o ciclo da exclusão. Políticas universais são importantes, mas políticas com foco em equidade são indispensáveis.

O Estado deve acompanhar cada jovem que deixa o acolhimento, garantindo que nenhum seja lançado à própria sorte. É fundamental criar indicadores públicos de monitoramento, mostrando quantos estão estudando, trabalhando e onde precisam de apoio. Transparência e dados são o primeiro passo para enfrentar o problema com seriedade.

Esses adolescentes não podem continuar sendo invisíveis. A sociedade que se orgulha de ser acolhedora precisa olhar para os que crescem sem colo, sem família e sem oportunidades. Aos 18 anos, o que deveria ser o início da liberdade se transforma, para muitos, em um salto no escuro.

Como alguém que dedicou sua trajetória à promoção da igualdade racial, essa é uma causa que me move há anos. Lutei por políticas que dessem voz e futuro à juventude negra. Hoje, sigo acreditando que o Brasil só será justo quando toda criança e todo adolescente — independente da cor da pele — puderem sonhar com um futuro digno ao deixar o acolhimento.

Esses jovens não pedem piedade. Pedem apenas a chance de viver com dignidade.