
Em minha trajetória como ex-secretário nacional de promoção da igualdade racial, tive o privilégio — e a responsabilidade — de me debruçar sobre dados que revelam dores escondidas nos cantos do país. Entre 2012 e 2016, fui um dos articuladores da publicação Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, um relatório que me marcou profundamente. A cada gráfico, a cada número, não era apenas estatística: eram vidas de jovens negros interrompidas pelo silêncio de uma dor que ninguém ouviu.
Os dados não mentem. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2012 e 2021, a taxa de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil cresceu mais de 60%, enquanto entre os não-negros houve uma redução de 17%. Em números absolutos, só em 2021, 1.258 jovens negros entre 10 e 29 anos morreram por suicídio no país. A incidência é maior especialmente em estados como Bahia, Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais — territórios com forte presença negra, mas onde a desigualdade racial ainda estrutura a vida social. A maior taxa proporcional é observada no Nordeste, especialmente na faixa entre 15 e 19 anos.
Mas o que angustia esses jovens negros? Por que estamos falhando em oferecer a eles razões para continuar? A resposta é complexa e atravessada por camadas históricas e sociais. Falamos de jovens que crescem ouvindo que são suspeitos antes de serem notados por seus talentos. Que veem seus corpos hipersexualizados, sua estética desvalorizada e suas vozes silenciadas em espaços de decisão. Que convivem com a insegurança alimentar, a ausência de políticas públicas nos territórios periféricos e o racismo estrutural presente nas escolas, no mercado de trabalho, nos atendimentos de saúde.
É preciso ter coragem para afirmar: o racismo também mata em silêncio. Mata na forma da desesperança, do isolamento e da ausência de perspectiva. Mas não se trata de vitimização — trata-se de encarar a realidade com responsabilidade. E não se trata de ideologia, mas de humanidade. Os dados são apresentados pelo próprio Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), e estudos internacionais, como o publicado pela American Academy of Pediatrics, mostram que a taxa de suicídio entre adolescentes negros nos Estados Unidos cresceu 60% em dez anos, enquanto caiu entre os não-negros.
Ainda há um abismo de compreensão entre a saúde mental e a vida da juventude negra. Boa parte dos profissionais de saúde ainda desconhece as especificidades das experiências raciais no adoecimento psíquico. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE, 2019), jovens negros têm menos acesso a serviços psicológicos e psiquiátricos e mais dificuldade de adesão ao tratamento. Quando conseguem acessar, muitas vezes encontram profissionais despreparados para acolher suas vivências, ou que naturalizam o sofrimento.
É urgente criar políticas públicas permanentes, enraizadas nos territórios, nas escolas e nos serviços de saúde. Precisamos de Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSi) com profissionais antirracistas, que falem a linguagem dos jovens, que articulem com as redes comunitárias e com a escola. Precisamos de campanhas nacionais que falem com coragem sobre saúde mental e negritude, que mostrem que pedir ajuda não é fraqueza, é ato de resistência. É preciso que o Ministério da Saúde, em parceria com estados e municípios, implemente protocolos de identificação precoce de sofrimento psíquico nas escolas públicas, principalmente nas regiões mais afetadas.
Como gestor público, defendo uma política nacional de promoção da saúde mental da juventude negra que seja intersetorial, com recursos assegurados, monitoramento de resultados e participação ativa dos jovens na formulação das ações. Precisamos envolver as Secretarias de Educação, Juventude, Cultura e Direitos Humanos numa mesma estratégia, capaz de fazer com que cada jovem negro se sinta pertencente, importante e valorizado.
Não podemos mais aceitar que esses meninos e meninas morram tentando ser ouvidos. A prevenção do suicídio entre jovens negros exige mais do que frases prontas no Setembro Amarelo. Exige escuta ativa, compromisso de Estado e a certeza de que cada vida negra importa — inclusive a que sofre calada.
O Brasil precisa romper com a indiferença. E isso começa com coragem de olhar para os dados, mas também com sensibilidade para escutar os silêncios que eles escondem.