
No artigo “Peixe fora d’água”, Marcus Pestana reflete sobre a crise da democracia e da moderação no cenário político atual, marcado pela radicalização, intolerância e pela transformação de adversários em inimigos. Ele lembra que, após a queda do socialismo, parecia haver consenso em torno de um liberalismo com responsabilidade social, mas hoje o mundo vive um embaralhamento de cartas, com líderes como Trump, Xi Jinping e Putin simbolizando contradições globais. Pestana lamenta a ausência de diálogo, consenso e equilíbrio, valores antes representados por nomes como Tancredo, Ulysses e Covas, e conclui que o espaço para a sensatez se tornou raro, fazendo dele — e de muitos democratas históricos um “peixe fora d’água”. Ainda assim, diz optar pelo “realismo esperançoso”, confiando que o bem voltará a prevalecer.
Tempos estranhos os atuais. Não digo isso com saudosismo, sentimento que não gosto nem cultivo. Cada época tem seus sonhos, desafios, circunstâncias.
O grande legado do século XX parecia ser a consagração absoluta da democracia como valor permanente, inegociável, amplo, universal. E aí estamos nós, com a cara do mundo contemporâneo estampada nas faces de Donald Trump, Vladimir Putin, Xi Jinping e Benjamin Netanyahu.
Com a debacle da utopia socialista, a convergência parecia se dar em torno do liberalismo com algum tempero social. Liberdade indivisível: individual, política, econômica. Combinada com políticas públicas eficientes, responsáveis e sustentáveis que contrabalançassem a inevitável produção de desigualdades sociais. Como pano de fundo: um mundo integrado, economia globalizada, paz permanente, governança compartilhada e multilateralismo.
Nada mais distante do mundo atual. E as cartas embaralhadas. Enquanto o presidente dos EUA, suposta pátria do liberalismo, promove uma verdadeira balbúrdia desorganizadora em escala global, destruindo o livre comércio, alimentando conflitos e atacando antigos aliados, Xi Jinping, líder da próspera e autoritária experiência chinesa, discursa nos fóruns internacionais contra o protecionismo econômico e a favor do multilateralismo e da paz.
Capacidade de diálogo, construção de consensos na diversidade, sensatez, equilíbrio e ponderação parecem não ter morada na cena contemporânea. No Brasil e no mundo, predominam a intolerância e a radicalização. O ódio é disseminado com uma força inédita. A democracia pressupõe o mínimo de coesão social, pontes de diálogo, alguma unidade nacional, tolerância com os diferentes, aceitação da legitimidade dos atores políticos adversários e do direito de ocuparem o poder ao vencerem as eleições.
Não é um fenômeno só nas elites. Há um ódio presente dos nativos contra imigrantes árabes, africanos e latino-americanos, enraizado nas sociedades desenvolvidas. Há um ódio destrutivo entre adversários políticos transformados em inimigos de guerra.
Não há mediações. Ou você está com o xenofobismo, ou com as imigrações descontroladas. Ou você dá razão a Trump, ou defende o regime chinês. Ou você defende integralmente Israel, ou a Palestina, com Hamas e tudo. Ou você está com Alexandre de Moraes, ou com Bolsonaro. Quem pensa criticamente e pondera os vários vetores da vida é reduzido logo a um isentão claudicante que fica em cima do muro e não se posiciona.
O sensato, o ponderado, é um quase ingênuo. Um peixe fora d’água. Minhas referências políticas, no Brasil e no mundo, desde os idos de 1976, quando comecei na militância política e iniciei minha vida pública, eram Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Teotônio Vilela, Mário Covas, FHC, Felipe González, Mário Soares, Enrico Berlinguer, Bill Clinton, Tony Blair, Obama. Fico imaginando se chegassem hoje ao Brasil: onde se situariam no atual quadro político-partidário? Acho que estariam como eu: perplexos, pessimistas e sem lugar.
Não quero ser nem o pessimista amargo, nem o otimista ingênuo de Ariano Suassuna. Quero seguir seu conselho e ser um realista esperançoso. Meu personagem predileto, Dom Quixote, me ensinou: “… pois não é possível que o mal, como tampouco o bem, durem para sempre. Assim, tendo o mal persistido por tanto tempo, o bem deve estar próximo”.