
Ruth e Fernando Henrique Cardoso vinham ambos de uma tradição de compromisso com as questões sociais, mas por caminhos distintos
O livro Comunidade Solidária: Memória e Legado – homenagem a Ruth Cardoso, publicado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso, é importante não só pela homenagem e registro que fica, como também por chamar a atenção para um momento importante de inflexão na história das políticas sociais brasileiras. Professora de antropologia da Universidade de São Paulo desde a década de 50, casada com seu colega Fernando Henrique, Ruth se vê, em 1995, alçada subitamente à situação de “primeira-dama”, cujo lado cerimonial procurava evitar, sem com isso deixar de estar ao lado do marido e buscar um lugar próprio de atuação conforme suas próprias ideias. Ruth e Fernando Henrique Cardoso vinham ambos de uma tradição de compromisso com as questões sociais, mas por caminhos distintos. Aluno de Florestan Fernandes e Roger Bastide, a tese de doutorado de Fernando Henrique foi sobre o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, em que combinava o olhar antropológico sobre a população escravizada com a interpretação crítica marxista do capitalismo. Seu envolvimento com as questões sociais leva à perseguição pelo governo militar, e, no final dos anos 60, no exílio, torna-se célebre com o livro Dependência e Desenvolvimento na América Latina, em que interpreta os problemas de pobreza e subdesenvolvimento como consequências das assimetrias do sistema capitalista internacional. No final dos anos 70 começa sua carreira política em defesa da democracia, tornando-se, depois, o presidente do Plano Real, responsável pelo fim da inflação e pela modernização da economia. É um governo social-democrata com resultados significativos na área social, como a universalização da educação básica, liderada por Paulo Renato de Souza, e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), sob José Serra, além de dar início às políticas de Bolsa Escola e colocar na agenda pública os temas da desigualdade racial e dos direitos humanos. Mas a agenda econômica tem prioridade, e lhe falta uma política de inclusão mais ampla, voltada para o atendimento aos milhões que se aglomeravam nas grandes cidades ou buscavam sair da situação de pobreza e estagnação do campo. As políticas assistenciais que havia até então eram ou o sistema sindical e previdenciário criado por Getúlio Vargas, que beneficiava uma pequena parcela da população urbana e era controlado pelos “pelegos” profissionais, ou as redes de caridade e assistência social administradas pela Igreja Católica e líderes místicos, como a Legião da Boa Vontade. O que colocar em seu lugar? Ruth Cardoso tem uma resposta, que vem dos estudos antropológicos da vida cotidiana dos imigrantes que chegam às grandes cidades, dela e de colegas e contemporâneas como Eunice Durham, Maria Sylvia de Carvalho Franco e outras, quase todas, significativamente, mulheres. Longe do Estado e das redes assistenciais, estudam como as populações mais pobres se organizam, estruturam suas comunidades, mandam seus filhos para as escolas e se apoiam mutuamente a participar de forma ativa e produtiva das oportunidades que eram criadas pela economia que se modernizava. Havia no País uma cultura de raiz e uma população ativa que precisava somente de apoio e estímulo para tomar seu destino nas próprias mãos – a comunidade solidária, estimulando o voluntariado e criando condições para a mobilização e organização das populações locais. É a isso que Ruth se dedica, fora da estrutura do Estado, mas valendo-se dos recursos que conseguia mobilizar pelo lugar especial que ocupava. Não foram somente as antropólogas que viram isso. O viram também a parte da Igreja Católica ligada às comunidades eclesiais de base e as inúmeras seitas protestantes que se espalhavam pelo País. Viu também o Partido dos Trabalhadores, que se transforma, de um movimento sindicalista independente que havia surgido por oposição ao clientelismo varguista, em um grande partido que se junta aos movimentos comunitários e chega ao governo com uma plataforma difusa de defesa dos pobres, que aos poucos se consolida em uma política assistencialista que não para de crescer, tomando para si e ampliando o poder e os vícios do antigo trabalhismo. Entre bolsas, aposentadorias e pensões, milhões passam a depender de subsídios do governo, que se estendem também para o funcionalismo público, as classes médias, os partidos políticos e grandes grupos de interesse. O suficiente para ganhar eleições, mas não para manter a economia crescendo, investir em políticas públicas de qualidade, reduzir efetivamente a desigualdade e incorporar setores inteiros da população que continuam à margem, atraídos pelas religiões evangélicas e envolvidos na malha da economia clandestina das grandes periferias urbanas. Hoje, com cerca de metade da população e da economia dependentes do governo e mais recursos comprometidos com esses gastos do que a capacidade da economia brasileira de produzi-los, parece certo que esse modelo de Estado protetor e clientelista está chegando a seu limite. Em seu lugar não virá, certamente, o Estado mínimo do liberalismo extremo, mas uma nova configuração em que os valores das políticas públicas de qualidade, da solidariedade e da autonomia da sociedade sejam novamente valorizados, como queria Ruth Cardoso.