Rodrigo Zani: “Entre o juiz e o herói: por que Alexandre de Moraes não deve repetir o erro de Sérgio Moro”

Rodrigo Zani: “Entre o juiz e o herói: por que Alexandre de Moraes não deve repetir o erro de Sérgio Moro”

Artigo de Rodrigo Zani analisa a linha tênue entre magistratura e política e os riscos de endeusar juízes em meio à polarização do país

Por Rodrigo Zani

A Operação Lava Jato poderia ter entrado para a história do Brasil como um divisor de águas na luta contra a corrupção. Tinha todos os ingredientes necessários: respaldo popular, um vasto aparato jurídico e provas que colocavam em xeque figuras de alto escalão da política e do empresariado nacional. Mas a operação foi desvirtuada. Seus principais condutores — o então juiz federal Sérgio Moro e o procurador da República Deltan Dallagnol — trocaram o papel de servidores da Justiça pelo de protagonistas de um espetáculo político-midiático.

A vaidade de ambos não era sutil. A superexposição na mídia, as entrevistas em horário nobre, os balões inflados em manifestações com Moro vestido de Super-Homem — tudo indicava que não se tratava apenas de justiça, mas de um projeto pessoal de poder. As mensagens vazadas por um hacker e divulgadas pela imprensa confirmaram o que já se intuía: havia motivação política por trás de decisões judiciais, o que comprometeu seriamente a imparcialidade exigida de qualquer membro do Judiciário e do Ministério Público.

Quando Sérgio Moro aceitou ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, a Lava Jato foi, para todos os efeitos, enterrada. A imparcialidade do juiz deu lugar à conveniência política do ministro. Nesse momento, não apenas se rompeu a credibilidade da operação, como também se abriu espaço para que seus erros servissem de álibi para o retorno — e reconfiguração — de práticas opacas e antirrepublicanas.

Hoje, Sérgio Moro se reduz ao papel de um senador identificado com os setores mais conservadores da direita brasileira. Seu discurso ecoa o mesmo moralismo seletivo que marcou sua atuação na Lava Jato, mas agora sem a aura de imparcialidade que um dia ostentou. Já Deltan Dallagnol, após ter seu mandato de deputado cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral, atua como uma espécie de influenciador digital — ou blogueiro — da direita, promovendo pautas ideológicas e críticas agressivas ao Judiciário, especialmente ao STF. É um fim inapropriado e melancólico para dois personagens que, se tivessem agido com o rigor institucional exigido de seus cargos, poderiam ter deixado um legado transformador para o país.

Um dos desdobramentos mais visíveis desse contexto foi o chamado “orçamento secreto”, mecanismo que surgiu a partir da liberdade política desfrutada por certos parlamentares que, sentindo-se desimpedidos por controles institucionais eficazes, deram forma a uma conduta que violava princípios basilares da administração pública, como a legalidade, a publicidade e o interesse público. O vácuo institucional e moral deixado pela Lava Jato criou terreno fértil para esse tipo de distorção. O fim de uma cruzada moralista mal conduzida deu lugar à institucionalização da obscuridade nas contas públicas.

Além disso, surgiu da Lava Jato um legado ainda mais danoso: o uso distorcido do sistema de Justiça como arma política. O lawfare — termo que designa o uso estratégico e abusivo do aparato jurídico para perseguir adversários — foi normalizado. Um fenômeno inicialmente praticado por operadores do sistema judicial passou a ser replicado por políticos, que hoje tentam manipular investigações, decisões e inquéritos não para fortalecer a Justiça, mas para atingir rivais ou proteger aliados. O próprio processo contra Jair Bolsonaro, embora juridicamente embasado, ocorre em um contexto de forte polarização, sendo alvo de tentativas explícitas de interferência por parte de setores radicais.

A extrema-direita tem mobilizado redes digitais, apoiadores internacionais e figuras públicas para pressionar o Judiciário e criar narrativas de perseguição política. Em paralelo, o deputado Eduardo Bolsonaro intensificou sua atuação fora do país, visitando parlamentares e grupos conservadores nos Estados Unidos com o objetivo de minar a credibilidade do Supremo Tribunal Federal e, especificamente, do ministro Alexandre de Moraes. Trata-se de uma campanha sistemática para deslegitimar as instituições brasileiras perante a comunidade internacional, numa tentativa desesperada de invalidar ou desacreditar os processos em curso contra Jair Bolsonaro e outros envolvidos em ataques à democracia.

É nesse cenário turbulento que se destaca a figura de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal. Jurista renomado, professor universitário, ex-procurador da República e doutrinador respeitado no meio jurídico, Moraes tem uma trajetória sólida e marcada por profundo conhecimento técnico. Indicado ao STF por Michel Temer — e inicialmente criticado por setores da esquerda — consolidou-se como um dos protagonistas na defesa das instituições democráticas brasileiras, especialmente diante das ameaças autoritárias do bolsonarismo. Sua atuação firme nos episódios que culminaram nos ataques de 8 de janeiro revelou coragem, preparo jurídico e compromisso com a Constituição. Alexandre de Moraes demonstrou ser um magistrado de altíssimo nível, dotado de competência rara e notável capacidade de articulação institucional.

Como bem observou o decano do Supremo, ministro Gilmar Mendes, “se não fosse a atuação de Alexandre de Moraes, o Brasil estaria num pântano institucional”. De fato, sua firmeza foi crucial para proteger a ordem democrática em momentos de tensão extrema.

No entanto, é justamente por isso que Alexandre de Moraes não pode cair na tentação de fazer política — em nenhuma hipótese. Sua missão como magistrado exige rigor técnico, sobriedade e compromisso com os autos do processo, não com discursos públicos ou ambições pessoais. A fronteira entre a defesa da democracia e o ativismo político é tênue — e cruzá-la pode comprometer até mesmo as causas mais legítimas.

Juiz não é herói. Juiz é servidor público do Judiciário. Sua função não é agradar à opinião pública nem se tornar símbolo de resistência. Sua autoridade não deriva de carisma, mas da legalidade de seus atos. Quanto mais elevada a posição na hierarquia do Judiciário, maior deve ser a contenção, o respeito às formas legais e a consciência dos limites institucionais.

Esse princípio também se aplica ao atual julgamento de Jair Bolsonaro, que corre no Supremo Tribunal Federal. Alexandre de Moraes é o relator do processo, mas não decidirá sozinho. O caso será analisado e julgado de forma colegiada pela Primeira Turma do STF, composta por cinco ministros. Portanto, não se trata de uma decisão monocrática, mas de um julgamento plural, respaldado por diferentes visões jurídicas dentro da mais alta Corte do país. Ainda assim, como relator e figura de destaque no combate ao golpismo, Moraes tem a responsabilidade redobrada de atuar com máxima imparcialidade e rigor técnico, evitando qualquer atitude que possa ser interpretada como motivada por interesses políticos.

Moraes já foi atacado pelos dois polos políticos — pela esquerda, no momento de sua indicação, e pela extrema-direita, durante sua atuação contra o golpismo bolsonarista. Isso o credencia, de certa forma, como alguém capaz de resistir à tentação de tomar partido. Mas é preciso cautela redobrada. O Brasil não pode repetir o erro de endeusar magistrados. A democracia não se sustenta sobre heróis, mas sobre instituições sólidas e agentes públicos conscientes de sua função — e dos riscos de desvirtuá-la.

Se Alexandre de Moraes mantiver sua atuação dentro dos marcos estritos do devido processo legal, se julgar os envolvidos nos atos golpistas com imparcialidade, serenidade e fidelidade à Constituição, e, sobretudo, se resistir à sedução da política partidária após sua saída do STF, prestará um grande serviço à democracia brasileira. Do contrário, poderemos assistir, mais uma vez, à erosão da confiança no sistema de Justiça.

O Brasil precisa de juízes. Não de salvadores da pátria.